Esta publicação, apresentada originalmente para uma tese de doutorado, foi escrita por linhas tortas. Não por um Deus transcendente que “escreve certo por linhas tortas” -, mas por linhas de fuga de um pesquisador imanente – como diria Deleuze -. Isso porque os caminhos que me levaram a escrevê-la teve vários vieses e revezes pessoais, profissionais e acadêmicos, que longe de serem negativos, reputo-os como fundamentais para o aprendizado do tema pesquisado. Razão pela qual ela não é apresentada de forma clássica, linear ou hierárquica e, sim, através de pontos de vistas distintos que se entrecruzam nas esquinas desses caminhos tortos que me levaram a articular subjetividades, vivências e experiências para apresentar aqui algum conhecimento sobre o mundo do samba e o samba no mundo.
Numa dessas esquinas eu me encontrava no auge de um partido-alto na Pedra do Sal no Rio de Janeiro e foi impossível não perceber naquela forma circular e improvisada de cantar, dançar e batucar, a presença da ancestralidade e da cosmovisão africana na cultura brasileira em geral e no samba em especial. Foi impossível não associar àquela improvisação do Partido-Alto a noção de Rizoma e linha de fuga de Gilles Deleuze e Felix Guattari para entender que a vida – nem esta tese- é uma linha reta e, que aqueles negros batuqueiros que ali encantavam uma multidão de jovens brasileiros e turistas europeus naquela roda de samba, talvez sem saber, estavam justamente reverenciando e dando a “volta por cima” pelos seus ancestrais que também ali escravizados, eram vendidos nos trapiches ou que carregavam naquela pedra, sacos de sal nas costas.
Em outra esquina eu me encontrava ao lado da bateria de uma escola de samba no auge de um desfile de carnaval na Marquês de Sapucaí. Para quem já teve essa experiência não é difícil perceber o que a sonoridade daqueles instrumentos percussivos, aliado àquela harmonia de milhares de vozes, ao encanto daquelas belas e coloridas fantasias e à magia daquele cenário alegórico é capaz de fazer com o seu corpo e a sua alma, ao mesmo tempo. Diante daquela profusão de energia, alegria e encantamento no meu corpo e na minha alma, foi impossível não me lembrar da noção de imanência e potência do filósofo Espinoza para entender um pouco mais o que é o nosso carnaval.
Mas, as esquinas mais surpreendentes nos vieses e revezes desta tese foi quando eu me encontrava registrando o desfile das escolas de samba japonesas, no já tradicional “Asakusa Samba Carnival”, em Tóquio. Como negro, sambista e pesquisador, foram, na verdade, muitas emoções, mas três se destacam: a primeira foi quando assisto o desfile de uma banda com aproximadamente duzentas crianças tocando a música Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, para um público de quinhentas mil pessoas, no momento dos versos: “Brasil! Brasil! / Pra mim, pra mim / Ó abre a cortina do passado / Tira a mãe preta do serrado / Bota o rei congo no congado…”; a segunda foi quando ao fim do desfile assisto na calçada de um bar um grupo de sambistas japoneses – que não falavam português – cantando em português a música Além da Razão, do falecido e consagrado sambista brasileiro Luis Carlos da Vila e, a terceira foi quando me deparo com uma estátua de São Jorge, no centro da mesa da uma roda de samba, utilizada pelo grupo japonês “Balança Mas Não Cai”, para pedir a proteção de São Jorge Guerreiro e Ogum – expressão dita por eles – àquela roda, em um bar no centro de Tóquio denominado “Praça Onze”. Foi impossível não lembrar da noção de Mûntu do filósofo congolês Fu-Kiau e da presença da ancestralidade e da cosmovisão africana naquela manifestação cultural, já japonesa, e naquele local, do outro lado do planeta, para falar aqui de um devir-mundo do samba.
Portanto, ao trilhar essas esquinas, articular essas vivências com o conhecimento científico e realizar um mergulho no mundo do samba para produzir um conhecimento objetivo, esta tese se valeu desses e outros autores citados, de uma outra Cartografia e do método da pesquisa-intervenção para entender o que diziam essas subjetividades.
Os resultados são apresentados, proposital e metodologicamente, como in-conclusões, dado que, como um livro-rizoma, pode se constituir em um outro começo – ou um recomeço – para outros pontos de vista ou outras linhas de fuga. Daí o formato “ Começo – Pontos de Vista – Recomeço”. Daí a sua apresentação também na web, no formato de web-tese – no endereço www.sambaglobal.net/web-tese – , propostos para englobar esses múltiplos enfoques ou novos caminhos – ou outras linhas tortas – sobre o samba e o carnaval no mundo contemporâneo. Ou seja, para falar de um samba que já não é mais só autêntico, unívoco, tradicional e local: é global.